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O ÚLTIMO GRANDE HERÓI *

Silvio Luzardo

Crônica originalmente escrita em 02 de maio de 1994, em Brasília-DF

 

Entre o céu e a terra, desde remotas épocas, os homens evocam seus guerreiros. Aquele dominou a fera, outro deteve o fogo, este superou limites. Os destemidos romperam barreiras e se tornaram alados no coração do gentio, receberam louros, sobre o chão onde pisavam havia flores e ornamentos, as flâmulas e estandartes traduziam o festejo e a honra, o orgulho e a admiração. Uma tribo, um povo, uma nação deve ter seus heróis como um apanágio da sua grandeza e do seu testemunho diante do universo e da história.

 

Nós, brasileiros, tivemos até o último domingo um desses indomáveis heróis modernos. Tão audaz que se tornou um cidadão do mundo. Um guerreiro ágil como o vento, que fez de sua profissão um caudal de emoções, transformando os desafios em vitórias marcantes. Um destemido que, diante do imponderável, sempre superou a sua ansiedade com exemplar dinâmica, derrubando marcas e alcançando êxitos. Nada quedou inerte a sua passagem, ninguém conseguiu ignorar aquele raio luminoso que cruzava as pistas, muito poucos não guardaram o seu nome.

 

Na verdade, em pouco mais de uma década, aquele rapaz conseguiu envergar o uniforme uníssono dos lauréis e recebeu o abraço gigantesco de um povo que carecia de estirpes e tenazes personalidades públicas. Uma simbiose franca, um amálgama imenso e um círculo afetivo criaram essa atmosfera íntima que explica o fascínio da sua gente, envolvendo-o com a mais serena imagem da contemplação. Ele era, simplesmente, um dos nossos: “ô home bão!”, “um tchê, bagual, no más!”, “óxente, que cabra da peste!”, “meu ermão memo!”, o “trembão, uai!”, na mais pura linguagem da identidade, do apego e do imaginário popular.

 

De repente, a tênue linha que separa a vida da morte rompeu-se. Inapelável, como é, não nos permitiu sequer o direito de escudá-lo, de protegê-lo, de envolvê-lo na fortaleza do incomensurável. Ficamos inertes, esperando que a nossa força interior tivesse a capacidade de alterar o traçado da pista percorrida e deter a tragédia, inóspita visita que o envolveu com o seu manto negro. Éramos, naquele instante, como guerreiros totalmente desarmados diante do infortúnio. Nosso herói perecia e nossas armas de socorro eram ineficazes. Queríamos acenar nossas bandeiras, mas elas estavam derreadas. Queríamos impulsionar o aceno, mas ele estava abatido, queríamos orar, mas nos faltava a fé de repente enfraquecida.

 

Não mais o ruído do confronto com o perigo. Não mais à vontade de ultrapassar os riscos. Não mais o sorriso altaneiro. Não mais o aceno eloqüente. Não mais a bandeira verde amarela a tremular sobre territórios conquistados. Não mais a sua grata imagem a nos deixar eufóricos com suas investidas e destemores. Não mais o brilho inconfundível do último herói a reanimar a sua gente! Eis o impacto de nossa perda irreparável em Ímola.

 

Vai, Ayrton, conquistar o podium da Eternidade que, por mérito, mereces. Culminar o Tempo com a tua marca indelével. Vai, mexes com a grandeza do Espaço sem Limites onde poderás registrar tua coragem invulgar nos anais da Luz e da Imensidão. Mas, por favor, continues acenando de onde estiveres, para o teu povo e para os teus irmãos que, embebidos nesta alucinante despedida, permanecem em vigília, nesta hora em que a saudade exaure nossas forças e deprime o nosso presente.

 

Vem embalar no silêncio a nossa saudade e acalentar com a tua imagem insubstituível o coração de um povo exaurido pela falta de lideranças e exemplos de coragem e patriotismo.

 

 Silvio Luzardo é autor de ‘Eu! Falando em Público?”, 2006, e de “Ana Néri, o Elo das Correntes”, 2021.