De repente, e justamente do epicentro da pandemia da Convid-19, o tema polêmico e incerto da reforma tributária voltou a ser o centro das atenções de nosso País, seja do Governo Federal, seja do Congresso Nacional. Causa estranheza toda essa pressa na aprovação de tal pauta, considerando que se trata de uma reforma, que há muitos anos vem sendo debatida tanto no meio político, como no meio jurídico, não nos parecendo o caso de ser votada em meio a esse momento excepcional e, principalmente, na modalidade remota, desprezando-se toda a rigidez das formas previstas e o debate público que o tema merece, em obediência ao princípio do Estado Democrático do Direito.
Aliás, sempre defendemos e continuamos a defender que uma reforma desse porte e não menos controversa deve ser realizada a partir de estudos técnicos prévios e elaborada por uma comissão de juristas notáveis que entendam do assunto, como ocorreu com a reforma do Código de Processo Civil, por exemplo. O tema é sensível e merece uma maior dedicação, lembrando que a unificação tributária pretendida pelos Congresso Nacional, não representa, certamente, uma redução da carga tributária. Pelo contrário, já que se sabe de antemão que a nova sistemática terá um custo, que sairá do bolso do contribuinte.
Entende-se que existem pontos cruciais que deveriam ser contemplados pela reforma tributária, como, por exemplo: 1. Controlar a concessão de benefícios fiscais, devendo ser concedido e incentivado a quem está iniciando o empreendimento, a quem contribui para a qualidade de vida da cidade onde está localizado e estabelecimento, a quem contribui com o interesse público com a vinda do negócio à cidade, a quem protege o meio ambiente devendo a benesse ser dada de acordo com o potencial poluidor da empresa, e, principalmente aos jovens, a fim de incrementar o crescimento econômico e diminuir a desocupação. 2. Reforma do Imposto de Renda Pessoa Física, permitindo a dedução na base de cálculo com a aquisição de medicamentos. 3. Adequação da tabela do imposto de renda, criando alíquotas progressivas, aumentando o percentual dos que ganham mais e diminuindo a taxação para quem ganha menos. 4. Inclusão de normas gerais acerca dos métodos adequados de solução de conflitos, como a transação, a conciliação, a mediação e a arbitragem tributária. 5. Redução da aplicação incondicionada da substituição tributária nos impostos indiretos. 6. Em face do princípio da transparência, exigência de descrição nos documentos fiscais do custo da operação e margem de lucro. 7. Diminuição de responsabilidades tributárias atribuídas ao contribuinte, que são custosas e têm finalidade meramente arrecadatória e, muitas outras situações que se adequam a realidade do momento.
Obviamente que essa listagem é meramente exemplificativa, lembrando que muitos outros itens poderiam ser inseridos se a reforma fosse efetivamente realizada mediante estudos técnicos e realizados, como se frisou acima, por uma comissão de profissionais que vivenciam o tema no seu dia a dia, e não unicamente por políticos que, infelizmente, muito por desconhecerem a prática da realidade tributária e também por motivos eleitoreiros, acabam incentivando uma ideia que está longe do ideal e o que é pior, sem qualquer certeza de que o novo modelo reduzirá a carga tributária.
Nesse cenário, faz-se uma indagação: será que essa é a hora de se levar um tema tão polêmico e incerto à votação pelo moto remoto? É constitucional e legal a utilização do meio remoto para uma votação tão importante e grandiosa como é a da reforma tributária?
Ora, sabe-se que a função do Parlamento consiste no exercício da democracia. O voto on line deve preservar o justo equilíbrio entre a Constituição Federal e o modo de agir do Congresso Nacional, motivo pelo qual nem todas as votações devem ser feitas na modalidade remota. Existem casos mais específicos e abrangentes que demandam a presença física dos parlamentares, sendo a reforma tributária um desses casos.
Ora, se esperaram tanto tempo, por qual motivo não podem esperar um pouco mais para a votação que, como dissemos acima, não é nem de longe a ideal? Por qual razão insistem em votar de um modo nada democrático uma proposta que ainda é incerta para a população e até mesmo para os juristas mais renomados desse País? A reforma tributária não é um jogo de loteria, salientando, nesse sentido, que nem mesmo os seus proponentes sabem mesurar, ainda que de forma superficial, as suas consequências.
É importante dizer, ainda, que o Ato Conjunto das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal nº 2, de 2020[1], que regulamenta a apreciação, pelo Congresso Nacional, dos projetos de lei de matéria orçamentária, dispõe que apenas as matérias urgentes e as relacionadas com a Covid-19 serão pautadas.
Veja-se:
Art. 3º Somente poderão ser pautadas na forma prevista no art. 2º, as matérias urgentes ou relacionadas com a pandemia do Covid-19, que para isso tenham a anuência de 3/5 (três quintos) dos Líderes Câmara dos Deputados e do Senado Federal.
Em videoconferência realizada sobre o tema referente às sessões virtuais realizadas pela Câmara dos Deputados do Brasil e realizada no dia 1º de maio de 2020[2], Luiz Fernando Bandeira, que apresentou o Sistema de Deliberação Remota (SDR), foi enfático ao afirmar que: “Recomendo o uso do SDR somente para votação de matérias relacionadas à emergência ou de temas que não podem esperar pela normalização. Creio que esse instrumento não pode ser banalizado. Estou convencido de que o contato direto e pessoal entre os membros do Parlamento é essencial para o bom debate entre os senadores” [3].
A Resolução da Câmara dos Deputados nº 14, de 2020, que Institui, no âmbito da Câmara dos Deputados, o Sistema de Deliberação Remota, por sua vez, em seu art. 4º dispõe que:
Art. 4º As sessões realizadas por meio do SDR serão consideradas sessões deliberativas extraordinárias da Câmara dos Deputados, em cuja ata será expressamente consignada a informação de que as deliberações foram tomadas em ambiente virtual.
(…)
- 2º Nas sessões convocadas por meio do SDR deverão ser apreciadas preferencialmente matérias relacionadas à emergência de saúde pública internacional referente ao coronavírus (Covid-19).
Conforme se verificou das disposições emanifestações acima referenciadas, o próprio Parlamento entende que a utilização do Sistema de Deliberação Remota é uma excepcionalidade, não podendo haver qualquer dúvida, portanto, em torno da impossibilidade de se votar a reforma tributária pelo voto on line.
Por último, e bem mais controversa, existe ainda a questão da necessidade de se modificar a Constituição Federal para se poder regulamentar a votação em modo remoto.
Veja-se o que prevê o art. 47, da Constituição Federal:
Art. 47. Salvo disposição constitucional em contrário, as deliberações de cada Casa e de suas Comissões serão tomadas por maioria dos votos, presente a maioria absoluta de seus membros.
Ou seja: o dispositivo constitucional em comento exige que as deliberações feitas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, sejam tomadas por maioria de votos, presente a maioria absoluta de seus membros.
Ora, é óbvio que o Constituinte está a se referir à presença física dos parlamentares e não a mera participação, como ocorre quando as deliberações são feitas na sua forma remota. Depreende-se do Dicionário Michaelis que:
presente
pre·sen·te
adj m+f
1 Que se encontra, num dado momento, no mesmo lugar em que acontece algo (…).[4]
Assim, entende-se que, somente com uma mudança no texto constitucional, admitindo expressamente a possibilidade de votação pelo voto on line, é que as deliberações de cada Casa podem ser consideradas constitucionais.
Enfim, vários são os motivos pelo qual não se pode admitir que a reforma tributária seja discutida e votada pela via remota, nos termos do art. 60, § 2º, da Constituição Federal, como insistentemente quer o Presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia.
O fato é que se trata de um tema muito importante, polêmico e complexo, que não pode, evidentemente, ser deliberado por um voto realizado via celular. Se isso ocorrer estaremos realmente assistindo ao carnaval tributário de Alfredo Augusto Becker[5].
REFERÊNCIAS:
Ato Conjunto das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal nº 2, de 2020.
BANDEIRA, Luiz Fernando. Sessões remotas do Senado tornam-se exemplo para parlamentos das Américas. Disponível no seguinte endereço eletrônico <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/18/sessoes-remotas-do-senado-tornam-se-exemplo-para-parlamentos-das-americas> Acesso em 28 de julho de 2020.
Resolução da Câmara dos Deputados nº 14, de 2020.
Art. 47, da Constituição Federal.
Dicionário Michaelis Disponível no seguinte endereço eletrônico: < https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/presente> Acesso no dia 29 de julho de 2020.
Art. 60, § 2º, da Constituição Federal
BECKER, Alfredo Augusto. Alfredo Augusto Becker CARNAVAL TRIBUTÁRIO 2ª. ed. SP: LEJUS, 1999. Disponível no seguinte endereço eletrônico < https://www.saraiva.com.br/carnaval-tributario-2-ed-2004-429188/p> Acesso no dia 29 de julho de 2020.
[1] Disponível no seguinte endereço eletrônico: < http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/ato-conjunto-das-mesas-da-camara-dos-deputadose-do-senado-federal-n-2-de-2020-250852931> Acesso em 28 de julho de 2020.
[2] Conferência publicada pela ParlAmericas, organização com sede em Ottawa, no Canadá.
[3] Sessões remotas do Senado tornam-se exemplo para parlamentos das Américas. Disponível no seguinte endereço eletrônico <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/05/18/sessoes-remotas-do-senado-tornam-se-exemplo-para-parlamentos-das-americas> Acesso em 28 de julho de 2020.
[4] Disponível no seguinte endereço eletrônico: < https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/presente> Acesso no dia 29 de julho de 2020.
[5] CARNAVAL TRIBUTÁRIO 2ª. ed. SP: LEJUS, 1999. Disponível no seguinte endereço eletrônico < https://www.saraiva.com.br/carnaval-tributario-2-ed-2004-429188/p> Acesso no dia 29 de julho de 2020.