O ano de 2020 iniciou com uma ameaça aparentemente distante, fruto de uma epidemia que ocorria na China e tinha características de se tornar uma ameaça global. A rapidez entre o anúncio da nova doença e a decretação oficial de pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), ocorrida em 11 de março, atingiu a humanidade em um momento de plena revolução tecnológica, de intensa interconexão mundial e explosão do conhecimento científico nas mais diversas áreas do saber e em todas as atividades praticadas na Terra.
Num primeiro momento, para a maioria das populações com acesso à informação, a Covid-19 gerava uma sensação de incredulidade quanto às sérias consequências para a vida das pessoas. Porém, quando em meados de março progressivamente mais da metade dos habitantes do planeta foram colocados em graus variáveis de isolamento social, tudo definitivamente mudou e passamos a enfrentar o maior desafio da humanidade desde a segunda guerra mundial.
Os desdobramentos foram dramáticos, com impactos profundos na economia global e a consequente queda abrupta de renda, uma nova onda de desemprego, o fechamento de empresas e a recessão, que colocaram em extrema dificuldade milhares de pessoas. Como sempre, as repercussões foram mais intensas para os cidadãos de maior vulnerabilidade social, que tiveram suas necessidades aumentadas em número e intensidade, expondo ainda mais as mazelas da desigualdade, que tantos riscos representam para a história da humanidade.
Ao drama econômico se somou à insegurança provocada por um inimigo invisível, imprevisível e desconhecido, que se alastrou velozmente de norte a sul do globo terrestre, sobrecarregando sistemas de saúde até de países desenvolvidos, causando crises de assistência humanitária até então inimagináveis, com pessoas morrendo sem acesso à assistência básica, longe de seus familiares, sem o direito sequer de se despedir adequadamente de seus entes queridos.
Com o passar do tempo, por necessidade ou convicção, tivemos as mais diversas reações do ser humano, gerando crises de todos os portes, em diversas nações e também entre países. Muitos negaram e minimizaram a existência da pandemia, seja na condição de cidadão comum ou na posição de líderes globais, desafiando as recomendações científicas de distanciamento social, higiene das mãos e uso de máscaras, contribuindo, com isso, para o agravamento da crise. Outros exageraram nas suas previsões de danos causados à população, gerando maior instabilidade social, medo e até mesmo pânico. Dessa forma, milhares de pessoas adiaram ou tiveram interrompidos projetos de vida pessoais, familiares ou profissionais, individuais ou coletivos, desde casamentos, mudanças de moradia e criação de novos negócios até viagens e eventos.
Famílias e amigos se distanciaram, enquanto os afetos foram digitalizados. As pessoas passaram a se relacionar apenas com seu núcleo domiciliar, com distanciamento entre avós e netos, irmãos, namorados e parentes. As crianças e os jovens perderam um tempo precioso de escola e aprendizado, fazendo do ensino a distância a única forma de aprender. O relacionamento digital foi o paliativo encontrado para aliviar a tensão do isolamento.
A reclusão involuntária obrigou os seres humanos com o encontro consigo mesmo e a uma reavaliação de seus conceitos de felicidade e bem-estar planetário.
Com o passar dos meses, mesmo com o significativo aumento de agravos à saúde mental das pessoas, causados principalmente pelo estresse, depressão e ansiedade, o ser humano iniciou sua reação, comprovando mais uma vez sua adaptabilidade frente às adversidades. Milhares de pessoas passaram a praticar o trabalho remoto ou domiciliar (home office aos que preferem a língua inglesa) e as organizações perceberam que era possível retomar suas atividades, reinventando-se frente a uma nova forma de relacionamento humano.
Grande parte das atividades econômicas foram buscando alternativas, seja através de comércio eletrônico, consultorias online, telemedicina, entrega de refeições domiciliares etc., como forma de sobreviver a um período prolongado de quarentena e de incertezas. A criatividade mais uma vez mostrou a sua face e o empreendedorismo deixou ainda mais evidente o seu valor numa economia que reflete os pontos fortes e fracos do cenário à sua volta
A ciência também fez sua parte. Fomos inundados por milhares de pesquisas e artigos científicos na busca da compreensão da nova doença, dos melhores métodos diagnósticos, terapêuticos e da tão esperada vacina. Mesmo sem soluções mais contundentes, como um imunizante ou uma droga antiviral com forte impacto na evolução da doença, rapidamente a ciência foi conhecendo cada vez mais os mecanismos pelos quais a doença agride o corpo humano, possibilitando uma evolução na atenção e nos resultados obtidos em cada etapa da evolução da enfermidade.
Os pacientes passaram a ser internados mais cedo, o monitoramento da oxigenação e de marcadores de gravidade da resposta inflamatória permitiram terapias de suporte mais apropriadas. Drogas que combatem efeitos do vírus, como corticoides e anticoagulantes, foram decisivas para muitos pacientes, enquanto as equipes das unidades de terapia intensiva literalmente aprenderam a manusear cada vez mais os pacientes críticos.
Nunca tivemos tanta cooperação científica entre os povos para a busca de soluções definitivas que tragam de volta a humanidade para algo perto do velho normal. A troca de informação entre equipes de saúde na busca de soluções para enfrentamento do novo coronavírus abre um novo horizonte para evolução da ciência. Se o exemplo do que aconteceu neste momento for utilizado para os demais desafios da saúde, poderemos de forma definitiva entender que unidos – e somente unidos – somos capazes de superar grandes desafios, na defesa das conquistas da longevidade e da qualidade de vida.
Os sistemas econômicos precisarão encontrar soluções para a imensa desigualdade social que atinge parcela expressiva da população mundial e, com isto, trazer equilíbrio ao planeta. Os defensores da economia de mercado, da livre concorrência e de um estado mínimo e seus oponentes, que acreditam em um estado forte e interventor, precisarão ceder na busca por pontos convergentes. O tão necessário crescimento econômico e a tão esperada liberdade para empreender não poderão ser alheios à fome e à miséria extrema que golpeiam a dignidade humana e retratam um povo pobre em valores.
Após um semestre de pandemia vivemos a febre do trabalho domiciliar, que parece ser a solução para inúmeras empresas públicas ou privadas. Entendo que as reuniões feitas por internet e o trabalho remoto têm valor inquestionável. Mas o tempo vai demonstrar se nossos lares serão nosso local de trabalho definitivo e se estão preparados para isto.
O trabalho em equipe necessita do contato presencial, para engajamento das pessoas e estabelecimento de relações de confiança. Teremos que encontrar, muito provavelmente, um equilíbrio nesse novo modelo.
Assim, ao adentrarmos no sexto mês dessa guerra microscópica, inúmeras constatações tornam inexorável a conclusão de que o ser humano vai vencer a batalha da Covid-19. Na maioria dos países já se inicia o controle da pandemia, com a possibilidade de haver parcela da população com imunidade cruzada produzida por contatos anteriores com outros coronavírus. A habilidade da medicina em tratar cada vez melhor os pacientes sintomáticos, somada à perspectiva cada vez mais otimista de autorização do uso de vacinas, trazem-nos a esperança de um novo porvir.
O cerne da questão que envolve o tempo que vivemos é o impacto da pandemia sobre o comportamento humano. O isolamento social e a percepção de finitude do indivíduo nos remetem à reflexão sobre quais os valores que realmente não poderemos prescindir para uma existência feliz.
Quanto disso será enviado ao nosso inconsciente e guiará nossas futuras ações?
Mais uma vez temos a oportunidade de melhorar acima de tudo como pessoas. Nossos desafios são gigantescos, mas já provamos que somos capazes de enfrentá-los. Temos debates que podem ser acalorados, mas inevitáveis, como nosso sistema de saúde, formas de conduzir a economia e a discussão do papel da tecnologia em nossas vidas.
Penso que seremos mais fortes e poderemos ser mais felizes se cada cidadão puder contribuir nesse processo. Poderemos ser melhores como comunidade global se cada um de nós conseguir reavaliar suas metas ou objetivos de vida.
Se ao invés de priorizar objetivos financeiros ou materiais pudermos exercer a solidariedade, a cooperação, a capacidade de reconhecer os próprios erros, a perdoar os que tentam nos prejudicar de alguma forma, talvez estejamos no caminho do tão desejado novo mundo. Se ficarmos realmente felizes com o sucesso de nossos semelhantes e soubermos conviver com sentimentos diferentes exercendo a tolerância, certamente poderemos evoluir como seres humanos, auxiliados pela inovação, tecnologia e desenvolvimento científico, gerando uma grande e necessária transformação em nosso planeta.
Muito provavelmente aqueles que lerem estas palavras poderão considerar que são propostas utópicas, mas inúmeros detentores de grandes fortunas criaram fundações para apoio aos mais necessitados, muitas empresas têm programas de responsabilidade socioambiental extremamente competentes e milhares de cidadãos comuns são voluntários em ações para ajudar ao próximo. Essas iniciativas são um grande exemplo para que todos nós saiamos da zona de conforto, adotando práticas de vida que sejam sinônimo de felicidade.
Diante de toda essa grande e indispensável reflexão, penso que a pandemia deixa muitos recados à humanidade. Filha do veloz século XXI, ela quase fez o tempo parar. Por causa dela, o carro ficou na garagem, o trabalho assumiu o segundo plano, o silêncio pôde ser ouvido como nunca, enquanto nos recolhemos à espera de respostas. Nascida na era da tecnologia, ela fez as máquinas desligarem, provocou uma pausa nos avanços da inteligência artificial e desacelerou descobertas rumo ao futuro cada vez mais sem limites.
Se vamos ouvir todas essas mensagens, ainda não temos certeza. Se vamos aproveitar para aprender as lições deixadas, somente o tempo irá mostrar. Se ficamos de fato mais fortes para encarar o que o dia de amanhã tem a nos oferecer, é mesmo uma incógnita. Se já estamos prontos para enfrentar a nova normalidade, é uma grande e universal dúvida. A única certeza que temos é de que 2020 será sempre lembrado por um vírus invisível capaz de nos desafiar e mostrar que nada pode ser mais importante do que a vida de cada um dos 7,8 bilhões dos seres chamados humanos.
REMACLO FISCHER JUNIOR
Formou-se na Universidade Federal de Santa Catarina, em 1982, especializando-se em Pediatria e Neonatologia. Foi Presidente da Sociedade Catarinense de Pediatria por duas gestões, Diretor de Eventos Científicos e responsável pelo Comitê de Neonatologia da entidade, além de Instrutor Estadual do Curso de Reanimação Neonatal pela Sociedade Brasileira de Pediatria. Foi presidente da Associação Catarinense de Medicina (ACM), Vice-Presidente da Associação Médica Brasileira (AMB) da Região Sul e Conselheiro do Conselho Federal de Medicina (pela AMB). Trabalhou no Hospital Infantil Joana de Gusmão, onde foi Supervisor do Programa de Residência Médica em Neonatologia, e na Maternidade Carmela Dutra, onde foi Presidente do Centro de Estudos. Foi Presidente da Unicred Florianópolis por duas gestões, é presidente da Unicred Central SC/PR, presidente do Conselho Deliberativo da Quanta Previdência Unicred, Diretor e neonatologista da Clínica Santa Helena.
Artigo publicado no livro: “RETRATOS PANDEMIA 2020”, DE LUIZ ALBERTO SILVEIRA