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Hoje eu tive um sonho

Marcelo Elias Naschenweng, Juiz de Direito/ SC

Hoje eu tive um sonho e não foi o mais bonito da minha vida. Não se tratava de uma guerra de meninas ou meninos, pelo menos até onde se sabe. Pendia no ar uma preocupação global a impedir as pessoas de saírem de suas casas, de tocarem suas vidas, seus comércios, seus trabalhos, suas atividades, seus encontros.

Uma grave peste encerrou as pessoas em seus lares de modo que a vida não era mais partilha, ou pelo menos não daquele jeito já conhecido e entregue pela tradição. Mas isto não aconteceu em uma dada vila, em certa cidade ou em um só continente, mas acabou por abarcar o mundo inteiro.

A causa não se sabe, a ciência corre atrás, testando hipóteses na busca de um caminho já percorrido, tateando uma resposta para um questionamento ainda vigente. Na ciência é assim, até que a experiência se adone da esperança. A cura também não se conhece, mas as pesquisas seguem no mesmo empenho, desde os remédios já conhecidos para outros males. A vacina também segue perseguida no intuito do cuidado. Também outros esforços a vedar de antemão qualquer tipo de contágio.  Mais ainda quando este, o contágio, expande-se como pólvora, a causar um impacto de igual proporção, desencadeando uma reação de reserva: negado um aperto de mão, um abraço, um sorriso, inculcado por detrás de uma máscara.

Neste sentido, países emitem normativos, famílias regras e todos, ou quase todos, quedam submetidos a esta ordem provisória. Mas este provisório vai caminhando para um permanente e, então, no mesmo passo, ou não,  a inquietude vai despertando para as linhas do tolerável, do suficiente, do necessário, porque a agonia preme, contrista, comprime. Todavia, as consequências do mal enfrentado são graves, muitas mortes, doentes, muitos afetados. Bastava uma, eis que nenhuma vida é instrumental.

No mundo, os países se fecham, restringem, filtram e se defendem de modo a salvar os seus. A soberania vai robustecida com um acréscimo de encantamento, ante o baque sofrido pelo trânsito global, de qualquer  espécie. Sim sabemos que a soberania não é odiar a todos os países à exceção do seu, mas amar a todos a partir do seu. Como se o país fosse a extensão de nosso quintal. Mas agora, até mesmo nosso quintal apresenta cuidados adicionais. No país, a indústria, o comércio, a economia, o transporte sofrem com a retração.

Em círculo concêntrico, no ambiente doméstico, as famílias se resumem ao mais resumido possível, quanto menos toque, menos encontro, melhor. A tradição sofre uma interrupção – como se fosse possível: o que se faz com naturalidade hoje recebe uma investigação de pertinência, de cabimento ou, em degrau menor, uma nota de adequação. Talvez o peru de natal ganhe uma sobrevida e a ave galiforme possa acrescentar mais uma velinha ao seu bolo de milho e glacê.

Este tempo de vivência não comporta convivência, pelo menos não nos mesmos moldes. Assim sofre o corpo social, sofrem mais as famílias, as pessoas, isoladas, afetadas no emocional e no econômico. O econômico grita em socorro à subsistência, impelindo o responsável a buscar algum caminho de satisfação. De outro lado, o afetivo precisa ser olhado, aliás a saúde como um todo, mesmo na falta de sol ou de exercícios. A vida escolar também queda comprometida. Neste turbilhão, as redes sociais nos colocam na praça pública do compartir e, de certo modo, nos tiram da solidão, com todos os vieses que se há de ter.

Bem de ver que este estado de coisas rende ou pode render aproximações. Muitas relações são estreitadas ou apartadas, ainda que forçosamente, o que não impede que se reconheça um melhor convívio entre pai e filho pelo, antes impensável, tempo despendido; pelo (re)conhecimento entre os irmãos, talvez a sulcar uma amizade verdadeira; de igual forma um relacionamento, qual seja ele, é posto à  prova, neste tempo estranho de convivência, tal com a prata sete vezes depurada. O estranhamento, como diferença, pode ser do agrado ou não, mas de qualquer sorte – e aqui não diverge do regramento normal – há limites traçados pelo respeito ao indivíduo como tal. Enfim, este período de crise, irrecusável, precisa ser enfrentado com olhos postos no devir, sem perder de vista o presente, ainda que de soslaio.

Não, não é sonho nem ficção.  A narrativa, o artefato (arte factu, feito com as mãos) ficou para trás ante a complexidade da vida. Na reca(o)ntada metáfora de Platão foi o conhecimento que tirou o homem da caverna, por sua curiosidade, vez que a curiosidade é conhecimento em potência. Nos tempos vividos, foi o conhecimento, com notas dissonantes, que nos recomendou o interior da caverna; de qualquer forma, é ele que deve dela nos tirar no tempo e modo oportunos. Não resolve o problema e estende o tempo de solução, o fato de que, por motivos diversos, enquanto a mídia cumpre seu mister, ainda que parte dela dissipe informações de toda ordem e fonte, os cientistas não seguem o mesmo ímpeto comunicativo, nem entre si, cada qual trabalhando recluso em sua própria caverna. Que logo possamos migrar da caverna de Platão para a clareira de Heidegger; enquanto a força da luz do relâmpago que a tudo ilumina não chega, convém que calibremos o foco de nossas lanternas que, combinadas, poderão melhor luzir o claro-escuro da busca. Um conto árabe refere que em noite de lua cheia não se leva lanterna; mas parece que estamos em plena lua nova.

O direito neste interregno tem de apertar  ou afrouxar o aproche, pois deve regrar este tempo diferente de modo diferente, eis que todos estão de certa forma, mais vulneráveis,  mais suscetíveis; o acordo coletivo precisa mostrar sensibilidade e estar sujeito a ajustes, pelo mesmo desiderato que foi firmado ou aceito. O sono e a vigília reclamam alteridade, fiquemos firmes na esperança do despertar, leia-se, da superação, centrados em que a esperança não é uma virtude passiva, mas uma “sana tensión”.

Por fim, é o intersubjetivo, o esforço comum que salva, não foi canto solo mas voz coral que fez transcender o grito – ou a prece – na música de Erasmo e Roberto Carlos referida no início: La-la-la-la-lá-la <<A Guerra dos Meninos, 1980>>.

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