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Juízes, despertem!

Rogério Medeiros Garcia de Lima (Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor universitário; artigo publicado pelo jornal Gazeta do Povo, disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/juizes-despertem/, acesso em 05.04.2022)

Reli agora a minha tese de doutorado na UFMG, de 2001, intitulada “O Direito Administrativo e o Poder Judiciário”, em que destacava a necessidade de afirmação do Direito Administrativo no âmbito do Poder Judiciário e afirmava que a recíproca não é menos verdadeira: “Da firme atuação do Poder Judiciário, ao aplicar os princípios e normas do Direito Administrativo, dependerá a efetividade desse importante ramo do Direito Público. Propugnaremos pela disseminação de uma ‘vontade de Direito Administrativo’ nas três esferas de poder”. Duas décadas passadas, não há o que comemorar. Infelizmente, os princípios da administração pública – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, conforme o artigo 37 da Constituição da República – são descaradamente afrontados. A impunidade campeia.
Ingressei na carreira da magistratura em 1989, por concurso público. Não bastasse a decepção com o estado de coisas vigente no país, constato, aos 60 anos de idade, a deterioração da função jurisdicional. Em passado não muito remoto, o Supremo Tribunal Federal era mais contido e editava a Súmula Vinculante 37: “Não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia” (destaque meu). Mas hoje a nossa suprema corte é instrumentalizada pelos partidos políticos de oposição para impor medidas não aprovadas na via legislativa, por falta de votos. O jornalista J. R. Guzzo exemplificou com a nova lei sobre o saneamento básico, aprovada em 2020: “Quando os inimigos do atual governo perdem alguma votação no Congresso, vão correndo à ‘suprema corte’ e exigem que a vontade da maioria seja anulada. Sabem que está ali, hoje em dia, sua grande chance de mandar no Brasil sem ganhar eleição”.
O falecido filósofo conservador britânico Roger Scruton assinalava o surgimento de uma “Nova Esquerda” após a derrubada do Muro de Berlim, em 1989: “[Os dois objetivos da Nova Esquerda], libertação e justiça social, permanecem no lugar, mas são promovidos pela legislação e por comitês e comissões governamentais autorizados a extirpar as fontes de discriminação. A libertação e a justiça social foram burocratizadas”, afirma em Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda. Quem destoa desse ideário será “cancelado”, acusa Leandro Narloch: “A cultura de cancelamento criou um ambiente em que é perigoso discordar de ideias, propostas e até de termos preferidos por minorias identitárias. Quem ousa discordar corre o risco de ser linchado virtualmente, perder o emprego, o patrocínio ou a verba de pesquisa. É um ambiente terrível para o debate aberto e a liberdade de expressão”, escreveu ele em sua coluna de 1º de agosto de 2020 na Folha de S.Paulo.
A pauta igualitária foi introduzida nos tribunais brasileiros pela ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e das escolas judiciais. São instituições respeitáveis, mas ouso divergir dessa diretiva. Ao dispor sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura, em todos os ramos do Poder Judiciário nacional, a Resolução CNJ 75/2009 incluiu a disciplina “Noções Gerais de Direito e Formação Humanística”. Possui conteúdos como “Teoria Geral do Direito e da Política”, a abranger a agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; “Pragmatismo”; “Análise Econômica do Direito e Economia Comportamental”; e “Direito da Antidiscriminação”.
Com todo o respeito de que são merecedores o Supremo Tribunal Federal, o Conselho Nacional de Justiça e as escolas judiciais, não podemos transformar o Poder Judiciário em uma espécie de ONG promotora de direitos identitários. Muitos desses direitos não foram nem sequer sancionados pelo Poder Legislativo, mas são conferidos prodigamente por decisões judiciais e atos administrativos do CNJ.
Em 9 de agosto de 2021 assisti, por videoconferência, à aula inaugural da segunda turma de mestrado da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). Foi ministrada pelo desembargador José Igreja Matos, presidente da Associação Europeia de Juízes e primeiro vice-presidente da Associação Interna de Juízes (AIJ) de Portugal. Ele abordou o tema “A Magistratura no Direito Comparado: Desafios e perspectivas”, ocasião em que defendeu “uma atuação discreta e apolítica, como forma de o juiz não cair em tentações do jogo político”. Postura diversa, portanto, da predominante na Justiça brasileira, fomentada na formação de jovens magistrados.
Axel Kaiser e Gloria Álvarez assinalam o triunfo, entre nós, da doutrina do comunista italiano Antonio Gramsci: “Na América Latina, ocorreu a apropriação social da democracia como espaço adequado para a hegemonia, no sentido ‘gramsciano’ de liderança intelectual, liderança cultural, liderança ideológica e liderança política”, escrevem em El engaño populista. Por qué se arruinan nuestros países y como rescatarlos.
Enfim, já ingressei no ocaso da minha carreira. Este artigo não é uma afronta às mais altas instituições do Poder Judiciário, as quais respeitarei sempre. Não o escrevi para polemizar e tampouco impor um ponto de vista. Pela idade e experiência, sigo o saudoso poeta Ferreira Gullar: “Não quero ter razão, quero é ser feliz!”. Trata-se apenas de um despretensioso alerta: despertem, juízes brasileiros!

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