Liberdade total(itária) de expressão como negócio das plataformas-privadas-de-internet-multi-bilionárias e o entrechoque com direitos individuais (dignidade, honra, imagem) das pessoas, e o papel do exercício da soberania estatal nesses “hard cases”.
Em tempos de Internet, smartphones, redes sociais, e comunicação em tempo real e praticamente sem limites, como sói acontecer na história da humanidade, há o lado bom, e outros nem tanto.
Uma maravilha poder falar com uma mãe ou filho noutro lado do mundo por video chamada. O quê era objeto apenas de ficção científica até os anos 90 do século passado.
De outro mirada, a disseminação de informações deturpadas (falsificadas, as fake news), que desmontam a credibilidade de pessoas, instituições, empresas e até nações, traz a lume a pergunta:
Seria o direito de manifestação um direito absoluto, passível de tutela jurídica apenas ao depois de expressado?
Para responder essa pergunta precisamos investigar antes os lugares de fala.
Para as titãs da tecnologia (Google, etc…) evidente que qualquer controle de conteúdo por meio de autoridades públicas não é bem vindo. As redes sociais são um negócio bilionário. Ilude-se quem usa o Google e pensa que é de graça. Ao usar a rede se deixam rastros, dados pessoais, que são comercializados para orientar propagandas de outras empresas, que assim podem direcionar seus anúncios com maior assertividade ao perfil de cada grupo de consumidor.
Evidente, que o Estado intervindo numa propaganda ainda que criminosa, mas que gere engajamento e lucro para as titãs da Internet, estas se porão contra. Não há almoço grátis. E todos querem controlar seus lucros sem a ingerência de agentes externos, por melhores ou piores que sejam suas intenções, pois, no mercado o que vale são as cifras, o resto é conversa fiada – mas nem tanto, pois, se gerar engajamento, há cifras…
Quanto aos Estados, a questão passa a ser de soberania controlar o fluxo de informações. Com o mais rigor, conforme sua estrutura democrática e os ataques que suas instituições possam vir a sofrer (ou já sofreram) de sites hospedados em países estrangeiros nos quais por óbvio as jurisdições externas encontram percalços para chegar perto.
A propósito, não há um Estado no mundo cem por cento transparente. Houvesse, os EUA que se julgam a maior democracia mundial não estaria processando seu ex Presidente, Donald Trump, por ter levado para casa, em tese, informações que seriam segredo de Estado.
Os Estados têm seus segredos e buscam protege-los, Assange que o diga….
Estabelecidas as premissas fáticas e evidentes que:
1. as plataformas digitais lutam pelo máximo de circulação de informações (e pretensa “liberdade de expressão”), sua matéria prima, e,
2. Os Estados, inclusive, os EUA, possuem informações sigilosas e querem preservar suas respectivas soberanias, o que entra em choque com os interesses corporativos das plataformas digitais, resta-nos entrar no lugar de fala, e de destinatário da fala, dos indivíduos propriamente ditos.
Daí exurgem dois dogmas que provaremos não se sustentam.
O primeiro seria que haveria direito absoluto à liberdade de expressão.
Não há.
Pela palavra falada ou escrita se instiga (logo responde como autor do fato, a teor da co-autoria explicita no art. 29 do CP) um homicídio ou um genocídio (Hitler quem o diga), comete-se crime contra honra (calúnia, injúria e difamação).
Portanto, clarividente que a liberdade de expressão não pode significar um cheque em branco para cometer delitos.
Por derradeiro, exsurge outro dogma ultrapassado que diria que somente ao depois de expressada a palavra falada ou escrita é que estaria legitimado o judiciário agir em caso de crime.
Longe de ser verdade, tampouco justificável ou jurídico esse pensamento.
Aqui se confunde o pensar com o expressar.
Evidente, que a rigor o pensar é inescrutável, algo subjetivo e indecifrável até que expressado.
Enquanto pensamento, inescrutável por natureza, não há falar em ação externa factível para controlá-lo efetivamente.
Entretanto, isso não significa que não possa ser retirado conteúdo difamatório do ar e tomado medidas para evitar a recidiva na publicação de tais conteúdos.
Seria censura prévia?
A rigor, seria suspensão acautelatoria de propagação do ilícito.
Imagine só se seu vizinho não gosta de você porque se sente incomodado que as vezes escuta (ou pensa que escuta) você transando com sua esposa, enquanto ele escuta ópera.
Ele pensa que és um safado (até aí tudo bem, cada qual com seus pensamentos).
Mas, aí ele tem a ideia de contratar uma empresa on line, que oferece serviços por meio de um servidor na Tailândia, e que por um punhado de dólares dispara um milhão de Twitter em contas diversas e impulsionadas com fotos suas adulteradas transando com uma mulher horrível (com o rosto de sua mulher, por montagem claro, para buscar te desmoralizar evidente).
É direito (legitimo) de expressão isso?
É preciso esperar que cada vez que seu vizinho promova a tua difamação nas redes sociais você entre na Justiça ad infinitum a cada investida dele contra você?
Evidentemente que não.
Isso porque, é lição elementar que direitos individuais (e a própria Constituição) não são interpretados em tiras.
Sim, é direito individual e cláusula pétrea a liberdade de expressão, tal qual o direito à intimidade, à imagem e à proteção estatal contra – não somente – lesão, mas ameaça a direitos.
Em caso tais, faz-se uma ponderação dos direitos em entrechoque, devendo a liberdade expressão, quando deturpada, e meio de desmoralização indevida de terceiros, ceder para o direito à intimidade, ou à imagem, à honra, e de modo efetivo inclusive à ameaça a esses direitos ameaçados.
Portanto, embora cada caso concreto em sua riqueza de detalhes previamente impossível de delinear irá trazer contornos controvertidos (senão não estaria em juízo), ainda, que, com nuances variáveis, pode-se concluir:
1. O pensamento é inescrutavel, portanto, factualmente totalmente livre;
2. É interesse normal de mercado de quem venda dados (ou aluguem) defender sua máxima circulação, pelo que não impressiona as titãs das redes sociais lutarem por direito absoluto de expressão;
3. Por princípio de hermenêutica, e vasta jurisprudência das Cortes Constitucionais do mundo, não há lugar para absolutos em direito, e no caso concreto um pode ceder para outro, de modo que a liberdade de expressão pode ceder para o direito à preservação da imagem, intimidade, honra, tanto da pessoa física ou jurídica (instituições, empresas, etc), não se revelando direito absoluto, sendo lícito e recomendável ao judiciário não só defender violação, mas ameaça à violação de direito, o que autoriza, havendo elementos probatórios, em suspender uso de contas em redes sociais liminarmente, evidente, franqueando o contraditório processual e a ampla defesa na sequência para aquilatar por sentença de mérito a extensão das restrições a se determinar, ou não, ao acusado/réu/investigado;
4. Natural que os Estados tenham seus Segredos, e querem ao menos em seus territórios controlarem, mais ou menos, o fluxo de informações relevantes;
6. Defensável que os particulares querem se expressar, como também não querem ser vítimas de degradação de suas imagens e honra por meio de quem quer que seja que se utilize da mesma liberdade de expressão para lhe impingir danos;
7. Nesse contexto, em que o Poder Judiciário de diversas democracias ocidentais já vem decidindo e sopesando valores inerentes à liberdade de expressão e seus limites face à honra e imagem das pessoas (físicas e jurídicas), malgrado já haja abertura constitucional e precedentes para tanto (em 2004 STF terminou julgamento de obra antisemita retirada de circulação e condenando o seu autor…), bem como instrumentos processuais (tutelas inibitorias, liminares, cautelares, etc…), justamente para reduzir a liberdade interpretativa do Poder Judiciário e termos critérios mais claros a toda sociedade sobre os limites ao direito de expressão – por exemplo, o tempo que alguém possa ficar expurgado das redes sociais -, faz-se necessário o Poder Legislativo, de forma madura, sair da discussão de botequim de “tudo ou nada”, e debater legislação de controle a fake news. Acaso não o fizer, continuará a legitimar a investida do Poder Judiciário casuisticamente com base na (precária) legislação vigente.
Ralf Guimarães Zimmer Junior. Defensor Público de SC, com atuação na 4a Defensoria da Capital.