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Na era da transação tributária, inscrição em dívida ativa torna-se objeto de desejo entre contribuintes inadimplentes

Lucas Calafiori Catharino de Assis

O que até pouco tempo seria algo inimaginável tem se tornado cada vez mais comum: contribuintes inadimplentes com o fisco federal buscando o poder judiciário para que seus débitos sejam inscritos em dívida ativa.

Você não leu errado e tampouco estamos diante de uma notícia do “sensacionalista” ou de um episódio do “além da imaginação”. Mesmo diante dos efeitos negativos que acompanham a inscrição de um débito em dívida ativa, os quais vão desde a possibilidade de se presumir fraudulenta a alienação de bens por parte do contribuinte (art. 185 do CTN) até a possibilidade de a fazenda pública buscar a satisfação do crédito pela via da execução fiscal, tal medida tem sido vista por muitos como uma (ou a única) forma de solver o seu passivo tributário.
Esse aparente “surto” coletivo tem uma razão bem clara, a qual passaremos a explicar:

Com o advento da Medida Provisória 899/2019, mais conhecida como “MP do Contribuinte Legal”, posteriormente convertida na Lei 13.988/2020 o ordenamento jurídico passou a regular “os requisitos e as condições para que a União, as suas autarquias e fundações, e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária”.

Algumas das modalidades de transação em vigor podem conceder redução de até 100% (cem por cento) sobre os valores de multas, juros e encargos e possibilidade de parcelamento em até 145 (cento e quarenta e cinco) meses, com exceção dos débitos previdenciários que, dada a limitação constante no §11 do art. 195 da Constituição, só podem ser parcelados em até 60 (sessenta) meses.

Além disso, a transação tributária, quando envolver moratória ou parcelamento, implicará a suspensão da exigibilidade dos créditos tributários transacionados, a teor do que dispõe o §2º do artigo 4º da Lei 13.988/2020, evitando, assim, que os contribuintes venham a ser cobrados durante o curso do acordo de transação e possibilitando a obtenção de certidão positiva com efeitos de negativa (arts. 205 e 206 do CTN), documento imprescindível à atuação de muitas empresas.

No entanto, em que pese a Lei 13.988/2020 ter autorizado o emprego da transação também aos créditos tributários não judicializados sob a administração da Secretaria Especial da RFB (art. 1º, § 4º, I), as modalidades de transação tributária até então regulamentadas estão condicionadas à necessidade de que os débitos a serem transacionados já tenham sido objeto de inscrição em dívida ativa.
Eis, portanto, a razão do repentino e inusitado interesse dos contribuintes em verem seus débitos inscritos na dívida ativa da União: possibilitar a adesão às modalidades de transação tributária de forma a possibilitar que os contribuintes usufruam dos benefícios dela decorrentes.

E a pretensão dos contribuintes, apesar de até então pouco convencional, encontra amparo em nosso ordenamento jurídico. Isto porque o encaminhamento do débito para inscrição em dívida ativa da União é um ato vinculado, ou seja, encontra-se fora do âmbito de discricionariedade do agente administrativo, o qual está obrigado, inclusive sob pena de responsabilização pessoal, a assim proceder dentro do prazo de noventa dias da data em que os créditos tributários se tornarem definitivamente constituídos, a teor do que dispõem o art. 22 do Decreto-Lei nº 147/67 e a Portaria PGFN/ME n. 6.155 de 25 de maio de 2021.

É, portanto, dever da autoridade administrativa proceder ao encaminhamento dos débitos dos contribuintes para que sejam inscritos em dívida ativa.

No entanto, em que pese a clareza da legislação, é sabido que há uma morosidade injustificada por parte da administração tributária.
Tal demora tem o condão de retardar o início das medidas tendentes à cobrança dos créditos tributários que, ao cabo, servirão para custear a máquina estatal em proveito de toda a coletividade, bem como de obstar o direito subjetivo dos contribuintes de aderirem aos programas de composição alternativa de conflitos tributários, o que tem obrigado muitos contribuintes a recorrerem à via judicial para que seus débitos sejam inscritos em dívida ativa.

Afinal, não pode o contribuinte restar prejudicado pela inércia da Fazenda Pública em cumprir com as suas obrigações legais, posição que vem sendo amparada pelo Poder Judiciário, a exemplo do posicionamento recentemente firmado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em acórdão que restou assim ementado:

TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. REMESSA NECESSÁRIA. DIREITO À INSCRIÇÃO DO DÉBITO EM DÍVIDA ATIVA, PARA QUE POSSA SER OBJETO DE TRANSAÇÃO. LEI Nº 13.988/2020. Presente o direito líquido e certo a que, superado o prazo regulamentar, seja determinado o encaminhamento dos débitos ativos na Receita Federal para inscrição em dívida ativa, para que possam ser objeto de transação, nos termos da Lei nº 13.988/2020 .

É de se destacar, ainda, que, como bem exposto pelo Juiz Federal titular da 3ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Amazonas, Ricardo Augusto de Sales, por ocasião da sentença proferida no Processo n° 1022037-41.2020.4.01.3200, a realização da inscrição em dívida ativa no prazo legalmente estabelecido com vistas a viabilizar a adesão à transação tributária, para além de se consubstanciar em um dever do servidor público e em um direito do contribuinte, “não acarretaria qualquer prejuízo para a União, muito pelo contrário (…) trará benefícios para ambas as partes.”

Com base nos benefícios mútuos anteriormente referidos e na ausência de prejuízo à União, já se tem notícia de decisões que, inclusive, afastam a necessidade de já ter havido o decurso do prazo de 90 (noventa) dias para que haja o deferimento da medida.
A título exemplificativo, cite-se a decisão proferida pela 3ª Vara Federal Cível da Subseção Judiciária de Goiânia nos autos do mandado de segurança 1003134-57.2022.4.01.3500, de onde se extrai que:

“(…) é viável, nestes casos, a incidência dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade no âmbito dos parcelamentos tributários, quando tal procedência visa evitar práticas contrárias à própria teleologia da norma instituidora do benefício fiscal (REsp. 1.143.216/RS, Rel. Min. LUIZ FUX, DJe 9/4/2010), para a inscrição dos demais débitos pendentes, independente do transcurso do prazo de noventa dias (…)”. (grifo nosso)

No entanto, os contribuintes que porventura se encontrem nessa situação devem correr contra o tempo para buscar a inscrição de seus débitos na dívida ativa da União como forma de possibilitar a adesão às modalidades vigentes de transação tributária, haja vista que há diversos trâmites administrativos a serem observados entre a inscrição do débito em dívida ativa e a concretização da transação almejada e que o prazo de adesão à quase totalidade das modalidades atualmente vigentes se encerra em 25 de fevereiro de 2022.

Lucas Calafiori Catharino de Assis é advogado, cofundador da Escola Brasileira de Tributos, especialista em direito tributário pelo IBET/SC e mestre em direito tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa