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Qualidade, Segurança e Respeito

Eduardo Porto Ribeiro
Presidente do CRM-SC

A dificuldade de garantia da oferta de atenção primária à saúde, principalmente nos locais chamados de difícil provimento, é um problema antigo, complexo e sempre urgente, que merece discussão séria, com foco em soluções estruturais e duradouras. Antes de mais nada, é essencial destacar que as políticas de interiorização e aumento da capilaridade do trabalho médico são fundamentais. Ninguém pode ser contrário a isso.

Por outro lado, é equivocado – inaceitável seria o termo mais adequado – abrir mão da qualidade e segurança no atendimento em troca de falsas promessas. Aqui reside o ponto crítico da nova versão do Mais Médicos. A proposta abre a possibilidade de atuação, no País, de profissionais que não passaram por qualquer processo que ateste e assegure a qualidade de sua formação ou estabeleça um adequado monitoramento de suas práticas. Quem vai arcar com os riscos que isso representa, evidentes e iminentes, serão justamente os mais necessitados.

O Brasil conta com um mecanismo importante de regulação da qualidade do trabalho médico – o registro profissional e a supervisão dos profissionais pelos Conselhos, autarquias criadas a partir de legislação Federal justamente para proteger os cidadãos e promover a boa prática da medicina. Todo médico que atua no Brasil precisa de registro no respectivo CRM. Profissionais formados no exterior são bem-vindos, desde que comprovem sua aptidão técnica, e revalidem seus diplomas, como é no resto do planeta. Embora nenhuma medida seja infalível, remover os filtros existentes de proteção da sociedade, de preservação mínima da qualidade da medicina ofertada, é uma irresponsabilidade.

Esta possibilidade fica ainda mais descabida se considerarmos que abertura descontrolada de faculdades em território nacional determinou uma explosão no número de médicos. Hoje já somos em torno de 550 mil – e a estimativa é que sejamos 850 mil em 5 anos. Santa Catarina hoje conta com 24.876 médicos ativos, o que se representa 3,4 médicos por mil habitantes. Aqui também há variações na densidade por região, sendo em torno de 10,7 por mil em Florianópolis, e 2,5 por mil em cidades do interior do estado, índice similar à proporção de países da OCDE como Estados Unidos (2,6), Canadá (2,5) e Japão (2,5). Nossas cidades não deveriam ter problemas para contar com profissionais qualificados na sua rede de atenção à saúde. Médicos não faltam!

Se há dificuldade em atrair e reter médicos nestes empregos públicos, é por falhas do modelo oferecido. O habitual é a completa falta de segurança trabalhista. São corriqueiras as histórias de médicos que se mudam com toda a família e que, após atendimento de correligionários, recebem do prefeito o primeiro salário. Depois o calote no segundo e demissão no terceiro. Há também precariedade nas condições de estrutura física, e dificuldades em encaminhamento ágil de casos graves, levando a dificuldades e riscos ao bom exercício profissional.

A solução oferecida pelo Mais Médicos, de um contrato temporário de quatro anos, renovável por mais quatro, pagando bolsa, é não só insuficiente, mas desrespeitosa com o médico brasileiro. Afinal, o médico que decide se dedicar e trabalhar em uma comunidade ribeirinha, por exemplo, por oito anos, vai ao final se tornar um desempregado? Caso ao final se mude, terá que recomeçar do zero a sua vida profissional?
É mesmo previsível que a baixa atratividade do programa determine, mantidas as regras atuais, baixo interesse dos médicos em irem justamente para os locais que se pretende atender com o programa. Em vez de buscar soluções, porém, optou-se pelo caminho mais simples, abrindo a possibilidade de contratação de profissionais não comprovadamente habilitados. Isto é um absurdo que deve ser amplamente rechaçado pela sociedade. É evidente que não se consegue garantir desta forma uma distribuição equânime de bons profissionais, ferindo-se o princípio democrático de acesso igualitário do SUS e trazendo riscos à saúde destas populações.

Há anos as entidades médicas defendem a necessidade de construir as condições adequadas para atrair o médico formado para localidades ainda não atendidas. Isso exige a oferta de equipamentos, instalações com segurança sanitária, infraestrutura, segurança trabalhista e boa remuneração. Assim como ocorre em outras categorias, há que se criar uma carreira de estado para o médico. O profissional concursado, em regime de dedicação exclusiva, com boas condições de trabalho e espaço para avançar na carreira, ocuparia postos em diferentes regiões, garantindo a capilaridade na oferta de médicos à população e oferecendo a mais que necessária qualidade no atendimento. Torcemos para que haja uma revisão deste programa federal. Que se inclua uma solução de longo prazo, que seja inovadora, democrática, acessível, eficiente, inclusiva e que priorize a qualidade e segurança ao atendimento à saúde da população.