Nunca vesti uma farda militar em minha vida. Mas acredito que conheci, com alguma profundidade, a vida militar através da vida de meu pai. Ele chegou ao último posto da hierarquia naval, como Almirante de Esquadra (quatro estrelas) e foi Ministro da Marinha (quando ainda existia esse Ministério, antes da criação do Ministério da Defesa, de cuja construção ele foi colaborador). E foi considerado um dos maiores estrategistas militares do Brasil. Ele faleceu em 01 de agosto de 2019, aos 88 anos.
Portanto, passei quase toda a minha vida participando da vida militar naval, tendo morado em duas bases (Val de Cães, em Belém/PA e Aratu, em Salvador/BA). Meu pai comandou muitos setores e navios da Marinha do Brasil, inclusive a Escola de Guerra Naval e o Estado Maior da Armada, entre tantos outros. Convivi com tudo isso. Mas logo no início desse texto afirmo: eu jamais teria sido militar e, aliás, meu pai jamais tentou fazer com que eu fosse. Definitivamente não é minha aptidão. Aliás, nem mesmo estudei em colégio militar.
Mas num momento que tanto se fala em militares no Governo, no chamamento dos militares para intervir no Congresso e no STF, de quem estamos falando? Vou tentar responder, a partir do que aprendi, com ele e com a corporação, onde fiz grandes amigos.
Primeiro é preciso desmistificar a ideia de que todo militar gostaria de intervir na vida política do país. É verdade que a participação dos militares na vida política do Brasil foi muito intensa nos séculos XIX e XX. No entanto, as gerações de militares que foram galgando os postos na hierarquia pós-regime de 1964 se mantiveram muito a distância do que ocorreu nos governos e na repressão política do regime. Foram se tornando cada vez mais profissionais da carreira, muitos participando da política como civis, mas não como representantes das Forças Armadas. Meu pai me dizia que ele pouco sabia do que acontecia nos porões do regime de 1964. Assim como a maioria dos oficiais e praças.
A grande maioria dos militares que conheci era e é assim. São profissionais. E muitos deles brilhantes nas suas áreas de trabalho. Quase todos com sentimentos nacionalistas muito fortes, podendo ser de centro, de direita e de esquerda. Têm suas opiniões políticas e as exercem como todos os outros cidadãos do país (ressalvado o fato de que não podem se filiar a partidos, enquanto na ativa, ou se filiam apenas na Convenção que os consagra para uma candidatura em eleições).
Um exemplo da maturidade das Forças Armadas está contido em gravações que meu pai deixou em minhas mãos, falando de sua percepção a respeito de assuntos de alto nível nacional em que esteve envolvido, principalmente em relação aos Governos Collor e Itamar (no primeiro era Ministro da Marinha, no segundo Ministro de Assuntos Estratégicos), deixando como registro histórico. Numa dessas gravações discorreu sobre o processo de impeachment do Presidente Collor. Abordado por diversos setores políticos a época, ele, falando em nome dos ministros militares, garantiu que nada seria feito pelas Forças Armadas no campo político, por não ser sua função constitucional. E que esperava que a classe política resolvesse a situação no marco da legalidade constitucional (dito na mídia da época).
Como qualquer pesquisa em jornais e revistas daquele período pode demonstrar, nenhum movimento militar aconteceu, com as Forças Armadas se mantendo a margem da política, conforme preceitos constitucionais (já na vigência da Constituição de 1988). Talvez tenha ocorrido alguma manifestação de alguns membros da velha guarda, ou de algum saudosista anacrônico, sem qualquer eco entre as novas lideranças militares. Ainda assim não resultaram em nada. O povo, a política e a Constituição deram sequência à vida nacional superando a crise de forma pacífica e ordeira, fortalecendo as instituições.
Naquele momento eram dados grandes passos para que as Forças Armadas tivessem a imagem que possuem nas nações desenvolvidas, e não numa republiqueta a mercê de grupos que se consideram salvadores da pátria. Vale ressaltar como as sociedades mais desenvolvidas têm profundo respeito por suas Forças Armadas. Aqui ainda há certa desconfiança (lembranças do passado) sobre uma possível intervenção inconstitucional e se gasta tempo em debates sobre isso, prejudicando a própria imagem dos militares. Mas isso está sendo superado novamente.
Voltando aos salvadores da pátria, meu pai escreveu muitos artigos em jornais sobre o perigo desses indivíduos, que acreditam ser ungidos para dirigir uma nação. O que ele costumava dizer é que, de modo geral, golpes e revoluções, comandadas por esses supostos salvadores, muitas vezes começam com “bons propósitos”, mas sempre terminam nas mãos de radicais que transformam o processo em regime duro, grande parte das vezes com torturas, perseguições, assassinatos, censura, tudo a serviço do que pensam os radicais que se apropriam do controle do regime. Foi assim que grande parte da classe média aceitou bem o golpe de 1964, pelos “bons propósitos”, mas grande parte da classe média também foi às ruas pedir a volta da plena democracia em 1984, o que exigia eleições diretas para todos os níveis e uma nova Constituição. O que veio a ocorrer.
Os militares se profissionalizaram e passaram a compreender a democracia bem melhor do que uma parcela da sociedade civil que ainda vive o período da chamada Guerra Fria (ainda presos aos acontecimentos dos anos 1960). Os militares não estão à disposição para quarteladas. Querem desempenhar da melhor forma a proteção dos interesses nacionais na segurança de nossas fronteiras, na defesa nacional de forma mais ampla, ou no serviço que prestam a tantos brasileiros em várias partes do país, com grande destaque na Amazônia (ouvi relatos emocionantes de meu pai sobre esse trabalho). Como cidadãos, podem ser Presidentes, Governadores, Prefeitos, Ministros, Secretários ou Parlamentares, dentro da lei. Como instituição, vamos deixá-los em paz e apoiá-los, para que sigam trabalhando a serviço do Brasil e vamos resolver nossos problemas com uma boa participação política e não se esquecendo em quem votou na última eleição. Esse nosso real problema político.
Meu pai foi o Almirante Mario Cesar Flores, e digo isso com muito orgulho, e agradeço publicamente as homenagens prestadas pela Marinha do Brasil na sua despedida. Foram muito lindas e emocionantes. Como os militares sabem fazer.