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Saneamento e contrato de programa

Tiago Jacques Teixeira – Advogado

Razões para rescisão ou para não prorroga-lo

Em saneamento faz-se valer a máxima de que o Brasil é o país da procrastinação, terra onde a lentidão é algo “protocolar, litúrgico, dignificante”, tanto que o Brasil “não tem problemas, apenas soluções adiadas”, como ensinava o historiador, advogado e jornalista Luís Câmara Cascudo. Pela série histórica de investimento que vem sendo realizado no saneamento, a meta de universalização do Plansab (ano de 2033) deverá ser prorrogada, segundo especialistas, para além do ano 2050, caso nenhuma mudança radical aconteça.

 

As Companhias Estaduais de Abastecimento representam um modelo que precisa ser superado, porém nem sempre sob o argumento de redução da tarifa. De nada adianta ter uma tarifa artificialmente baixa com metas de universalização inexequíveis ou a perder de vista no horizonte.

No Brasil cerca de 75% da população é atendida pelas Companhias Estaduais de Água e Esgoto, como Casan, Corsan, Sanepar, Sabesp. Outros 15% são atendidos por autarquias (Samae) e apenas 10% pelo setor privado. Só 6% das cidades são atendidas pela iniciativa privada.

Os números do saneamento no Brasil são sofríveis se comparados ao do resto do mundo. Talvez um único número traga luz à situação periclitante do Brasil: o país é a 9ª economia mundial, porém em saneamento está colocado na posição 108º.

E Santa Catarina, que está acostumada a se ver no topo das listas de todos os rankings entre os Estados brasileiros, no saneamento e especialmente em esgoto, se posiciona, com todo o respeito a estes Estados, atrás de Pernambuco, Alagoas, Tocantins, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, apenas para citar alguns.

Alguns números de Santa Catarina em saneamento impressionam, dos quais destaca-se: a) 80,6% não tem acesso à rede de coleta de esgotos; b) 13,1% da população ainda não recebe água tratada; c) apenas 24,7% do esgoto gerado é tratado antes do descarte – o restante volta ao meio ambiente sem qualquer tratamento; d) 36,6% da água produzida é perdida nas redes de distribuição.

O dilema atual dos Prefeitos de todo o Brasil diante da iminente aprovação do marco legal do saneamento é: romper o contrato de programa firmado com a Companhia Estadual/Casan e licitar o serviço, ou simplesmente pleitear redução da tarifa e prorrogar o instrumento contratual, portanto, sem licitação.

Não existe receita de bolo, cada caso é um caso, mas uma coisa é certa: o racional da “caixa preta” do subsídio cruzado e o nível de eficiência das Companhias Estaduais, aliado às dificuldades de investimento, contribuem para jogar para o infinito a meta de universalização.

A ruptura dos contratos de programa ou simplesmente não prorrogar os contratos vigentes e, por conseguinte, deflagrar processo licitatório para a concessão do serviço, pode ser positiva por:

(1) propiciar a competição entre vários players, que concorrerão em isonomia e estarão obrigados a cumprirem metas de qualidade, bem como a realizarem os investimentos para tal, sempre mantendo tarifa dentro dos parâmetros da modicidade (não raro em patamar inferior aos praticados pelas Companhias Estaduais). Para isso pautarão seus esforços na obtenção da eficiência administrativa e operacional, redução de perdas e melhor gestão;

(2) trazer eficiência para o setor, já que é incompreensível que mais de um terço da água tratada seja perdida nas tubulações. Aqui verifica-se índice de perda não visto em qualquer setor e muito além daqueles praticados pelas empresas privadas de saneamento. A eficiência não pode ficar reduzida às perdas, mas também compreender a gestão, manutenção e operação, sempre voltada para alcançar a universalidade e os melhores indicadores de qualidade na prestação do serviço, observada a modicidade tarifária;

(3) permitir a remuneração variável por meio de incentivos, de acordo com a obtenção dos indicadores de qualidade alcançados, melhor alocação de riscos, incentivo aos ganhos de eficiência e possibilidade de seu compartilhamento, presença de contratos incompletos, com o objetivo de manter a atualidade do sistema frente às circunstâncias como por exemplo, evolução tecnológica. Todas estas situações não são contempladas nos contratos de programa;

(4) os investimentos necessários para a universalização são inconciliáveis com a estrutura das Companhias Estaduais, que vem reajustando as tarifas em patamares superiores à inflação e dispendem grande parte de seus recursos para a folha de pagamento, que cresce de forma diretamente proporcional a distância abissal da meta de universalização. Os investimentos atuais correspondem praticamente a metade do necessário e ocorre sistematicamente desta forma há décadas;

(5) afastar as escolhas e interferências políticas nas Companhias, que passam ao longe das decisões técnicas que devem nortear o setor e do Value For Money/Vfm;

(6) permitir que a inciativa privada opere dentro de uma lógica de Sociedade de Propósito Específico/SPE, com transparência, governança, compliance e utilização de project finance, este último absolutamente incompatível com o racional dos contratos de programas.

A tarifa precisa mirar a meta de universalização e a qualidade desejada no sistema, por meio de indicadores. De nada adianta manter uma tarifa artificialmente baixa. Aliás, o natural com esta artificialidade é que bata à porta da municipalidade os custos de saúde pública e sociais decorrente da baixa qualidade e cobertura do saneamento básico. Estima-se, que para cada R$ 1 real investido em saneamento é gerada economia de R$ 4 em saúde.

Neste sentido, os Municípios podem empreender esforços para aferirem o cumprimento do contrato de programa pela Companhia de Saneamento, bem como a realização dos investimentos e a composição tarifárias. A conclusão da análise destes fatores é essencial e pode vir a motivar a rescisão. Discussões acerca de eventual indenização e até mesmo sobre os bens reversíveis podem ser discutidos em um segundo momento, já que estão afastados do epicentro da tomada de decisão (efetivo cumprimento do contrato de programa e composição da matriz tarifária).

Uma vez rescindido o contrato, se faz necessário que o serviço, por ser essencial, não sofra descontinuado, o que poderá justificar uma contratação emergencial (art. 24, inciso IV, lei Federal nº 8.666/93), cuja “nova” tarifa apenas fará frente aos custos operacionais (OPEX), não sendo composta pelo ingrediente de investimentos (CAPEX), a não ser aqueles essenciais para a continuidade da prestação no curto período da contratação emergencial. Apenas por conta disso, é sensato que a tarifa em um primeiro momento – contratação emergencial – sofra redução, porém cada caso deve ser analisado de acordo com as peculiaridades locais.

Para a modelagem da concessão o Município pode utilizar de seus técnicos, contratar consultoria especializada, deflagrar Procedimento de Manifestação de Interesse/PMI (Decreto nº 8.428/2015), acessar auxílio e recursos do Fundo de Apoio à Estruturação e ao Desenvolvimento de Projetos de Concessão e Parcerias Público-Privadas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios – FEP, gerido pela Caixa Econômica Federal ou até mesmo do BNDES, que passou a operar na estruturação de negócios de infraestrutura e tem priorizado o setor de saneamento.

Neste mesmo sentido, recentemente a Secretária Nacional do PPI, Martha Siller, anunciou que o Governo Federal por meio do PPI, passará também a auxiliar os Municípios nas questões atinentes ao saneamento, especialmente a modelagem das concessões.

Conclusão:

O modelo das Companhias Estaduais parece não estar apto para entregar os serviços de saneamento de que os Municípios precisam, seja por conta da eficiência (digo, sua falta), seja pela impossibilidade de fazer os investimentos necessários por conta restrições fiscais e orçamentária.

Contratos de programa, firmados sem licitação e, portanto, sem competição e isonomia entre todos os operadores, desconectados da realidade de cada Município, com metas de entrega de serviços e investimentos inadequados, devem ser rompidos ou não prorrogados.

Nada contra as Companhias Estaduais, muito pelo contrário, apreço pelos excelentes bons quadros que algumas possuem, porém, se querem prestar o serviço de saneamento, o ideal é que o façam em isonomia com todos os operadores (públicos e privados), por meio de licitação. A competição em igualdade de condições é fundamental e as Companhias Estaduais poderão e devem participar destes certames.

Atualmente o racional do subsídio cruzado não é apto para justificar os contratos de programa, quer pela possibilidade de PPPs (em saneamento, concessões patrocinadas), quer pela possibilidade de consórcios de Municípios ou até mesmo dos “blocos”, previstos no marco regulatório do saneamento que está prestes a ser aprovado.

Por se tratar de um serviço de competência municipal, executado na grande maioria dos casos por companhias estaduais e com diretrizes nacionais, o setor guarda algumas peculiaridades e riscos regulatórios, que precisam ser mitigados para atrair investidores.

A melhoria das condições do saneamento, tanto quanto a universalização como a qualidade da prestação do serviço, passa necessariamente por Prefeitos com visão de longo prazo, estadistas, que enxergam a cidade além dos 4 ou 8 anos do mandato eleitoral.