O Deputado catarinense Milton Hobus, apresentou Projeto de Emenda à Constituição do Estado de Santa Catarina (PEC n. 02/2019), com o objetivo de alterar o art. 39. A proposta é trazer uma nova competência para a ALESC: a homologação prévia dos projetos de parcerias público-privadas e concessões. Se aprovada a PEC, todos os processos de concessão e parcerias públicos-privadas passam a necessitar de uma “homologação” da ALESC. Enfim, uma espécie de controle prévio.
A PEC apresentada está em descompasso com todas as recentes inovações legislativas, especialmente a nova Lei de Concessões e Parcerias Público-Privadas, que tramitam em estágio avançado no Congresso Nacional. Da mesma forma, está desalinhada com o momento do país, que demanda por investimentos em infraestrutura ao mesmo tempo em que enfrenta severa crise fiscal.
Nada obstante, a PEC 02/2019 já foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da ALESC e pela Comissão de Finanças no dia 27/11/2019. Assim, em breve (e lamentavelmente!) deverá ser levada para votação no Plenário.
No exato momento em que o país envida esforços para destravar a economia, fazer as desestatizações, concessões e parcerias público-privadas necessárias, a PEC do Dep. Hobus concede um sinal claro aos investidores de que nosso ambiente de negócios não é dos mais seguros e estáveis. Ou seja, apresentamos os ingredientes que o investidor tem mais ojeriza: insegurança e instabilidade.
A ideia de fazer concessões e PPPs é simples e parte basicamente de duas premissas: (1) Finanças públicas em calamidade, déficit enorme de infraestrutura em um país continental. A alternativa é buscar a iniciativa privada para trazer investimentos e ter eficiência na sua alocação; (2) Estima-se que há no mercado dos fundos de pensão no mundo cerca de R$ 100 trilhões em recursos que precisam de rentabilidade na casa dos 5% a.a. Contudo, atualmente são escassas (para não dizer inexistentes) as rendas fixas que remunerem neste patamar. Logo, investimentos em infraestrutura de países emergentes passou a ser uma excelente alternativa no momento atual do mundo (economias encolhendo, envelhecimento populacional e polarização política).
Todavia, medidas como a PEC 02/2019 contribuem para que Santa Catarina continue a não ter nenhum contrato de PPP assinado até o presente momento e fique muito atrás de Estados como Bahia, Minas Gerais, São Paulo, que tem lançado mão destas parcerias para prestar serviços públicos com mais qualidade e menos custos. Enfim, para obter eficiência e melhor atender a população.
Contudo, não é a falta de sintonia da PEC com o momento do país e as necessidades da população que mais assusta, mas sim a sua evidente inconstitucionalidade material. Não há exigência de lei “homologatória” pela Constituição brasileira para que o Poder Executivo celebre contratos de concessão.
Aliás, exigência desta ordem mostra-se materialmente inconstitucional, eis que representa avanço do Poder Legislativo sobre competências que são tipicamente do Poder Executivo. Neste sentido, entende-se que há violação ao art. 2º da CF/88, ao ferir a independência e harmonia entre os três poderes, que é cláusula pétrea, cujo enunciado está no art. 60, §4º, inciso III, também da CF/88.
A Lei nº 9.491/1997 traz o Plano Nacional de Desestatização e nela não há qualquer exigência de “homologação” legislativa para desestatização. Esta decisão é de competência da Presidência, após recomendação do Conselho Nacional de Desestatização.
Da mesma forma a Lei Federal nº 13.334/2016, que criou o Programa de Parcerias de Investimento – PPI, atribui competência ao Poder Executivo para qualificar e modelar projetos de infraestrutura, fato que fica muito claro no art. 4º da norma c/c com inciso I, do art. 7º. Ambos dispositivos legais reforçam a ideia de que compete ao Chefe do Poder Executivo deliberar sobre tais matérias. O art. 13 da mesma norma é de clareza solar ao disciplinar que “a licitação e celebração de parcerias dos empreendimentos públicos do PPI independem de lei autorizativa geral ou específica”.
É impensável (além de materialmente inconstitucional) cogitar que o governo federal precisasse de homologação do Congresso Nacional para qualificar e levar à cabo a celebração de parcerias dos mais de R$ 1,3 trilhão de reais em investimentos em mais de 97 projetos (ferrovias, portos, energia, óleo e gás, aeroportos, rodovias e etc.), que compõem o pipeline de projetos do PPI.
Outras unidades da federação já tiveram declarada a inconstitucionalidade de norma com conteúdo idêntico ao da PEC 02/2019. O Supremo Tribunal Federal – STF na ADI nº 462/BA, reconheceu por unanimidade a inconstitucionalidade de dispositivo da Constituição do Estado da Bahia, que previa a necessidade de autorização/homologação da Assembleia Legislativa para a concessão e permissão de serviço público. A ementa segue abaixo colacionada:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Incisos XIII, XXIX e XXX do artigo 71 e § 1º do artigo 15, todos da Constituição do Estado da Bahia, promulgada em 05 de outubro de 1989.
– Os incisos XIII e XIX do artigo 71 da Constituição do Estado da Bahia são ofensivos ao princípio da independência e harmonia dos Poderes (artigo 2º da Constituição Federal) ao darem à Assembleia Legislativa competência privativa para a autorização de convênios, convenções ou acordos a ser celebrados pelo Governo do Estado ou a aprovação dos efetivados sem autorização por motivo de urgência ou de interesse público, bem como para deliberar sobre censura a Secretaria de Estado. – Violam o mesmo dispositivo constitucional federal o inciso XXX do artigo 71 (competência privativa à Assembléia Legislativa para aprovar previamente contratos a ser firmados pelo Poder Executivo e destinados a concessão e permissão para exploração de serviços públicos) e a expressão ‘dependerá de prévia autorização legislativa é do § 1º do artigo 25 (relativa à concessão de serviços públicos), ambos da Constituição do Estado da Bahia.
Ação julgada procedente em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos incisos XIII, XXIX e XXX do artigo 71 e a expressão ‘dependerá de prévia autorização legislativa e’ do § 1º do artigo 25, todos da Constituição do Estado da Bahia, promulgada em 05 de outubro de 1989.”
Do voto, ainda há o seguinte destaque do Relator, Min. Moreira Alves:
“(…) com efeito, em ambos se estabelece uma autorização prévia do Poder Legislativo – à semelhança do que ocorre com os convênios, convenções ou acordos celebrados pelo Poder Executivo – que se torna um pressuposto de validade das concessões e permissões para a exploração de serviços públicos, e, portanto, uma forma de participação na formação desses atos, o que, evidentemente, não se compadece com o poder de fiscalização ‘a posteriori’ que, pela Constituição Federal, incumbe ao Poder Legislativo com relação ao exercício da direção da administração que cabe ao Poder Executivo”
Em outra oportunidade ao novamente enfrentar o tema (AI 755.058/MG) o STF declarou inconstitucional o art. 179, da Lei Orgânica do Município de Ubá/MG, que condicionava a concessão ou permissão de serviço público à prévia autorização/homologação do Poder Legislativo, por entender que a norma violava o princípio da separação, independência e harmonia dos poderes – CF, art. 173.
Com efeito, é de se destacar que o STF em outros precedentes (ADI 676/RJ, ADI 177/RS, ADI 342/PR e ADI 165/MG) já declarou também a inconstitucionalidade de leis que exigiam a autorização/homologação do Poder Legislativo para a aprovação de convênios e contratos administrativos, matéria que é análoga à da PEC 02/2019.
Há também precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo na ADI nº 3112-60.2012.8.26.0000, por meio do qual foi declarado inconstitucional o parágrafo segundo do art. 74, da Lei Orgânica do Município de Taubaté/SP, que determinava a necessidade de autorização/homologação da Câmara Municipal para a celebração de contrato de concessão, nos exatos termos do que determina a PEC 02/2019.
Assim, com a devida venia e sem adentrar no mérito das motivações ideológicas do parlamentar, a PEC apresentada pelo Dep. Milton Hobus é daquelas típicas proposições natimortas, que não sobrevivem a qualquer exame de constitucionalidade. Apesar disso, a proposição passou pela Comissão de Constituição e Justiça da ALESC e foi aprovada recentemente pela Comissão de Finanças e seguirá em breve para o Plenário da Alesc.
É lamentável que proposições com conteúdo flagrantemente inconstitucional tramite nas comissões e alcance o plenário da casa para ser votada. Afinal, qual sentido faz votar e aprovar uma legislação inconstitucional? Talvez o único sentido que faça é esperar o ajuizamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, que com absoluta certeza e com espeque nos precedentes do STF a expurgará do ordenamento, caso venha a ser aprovada.
Existe uma agenda positiva de investimentos em infraestrutura no Brasil, que vem sendo adotada por vários Estados da Federação. Não é hora de Santa Catarina andar na contramão do desenvolvimento e deixar passar esta oportunidade. Não é o momento de criar mais burocracia e dificuldades, mas sim de destravar a economia e atrair investimentos. Santa Catarina precisa de segurança jurídica e bom ambiente de negócios para competir por investimentos em infraestrutura com os outros Estados da Federação.
Investimentos em infraestrutura por meio de concessão e parceria público-privada é uma forma de endereçar serviço público de qualidade para a população, que não pode e nem deve ficar à mercê de burocracias e de interesses, nem sempre os mais republicanos.
Que cada Poder cumpra o seu papel constitucional, que a Assembleia Legislativa atue na fiscalização das concessões, cobre esclarecimentos e tome as medidas que entender conveniente na constância dos contratos. Porém, controle prévio, jamais! Que Santa Catarina saiba fazer a sua hora e não seja atropelada na contramão do desenvolvimento por um movimento autofágico legislativo.
[1] CP3P-F, APMG International / World Bank Certified PPP Professional, Advogado, formado pela UFSC, atuante na área de contratações públicas, com enfoque em concessões e PPPs, sócio da Cavallazzi, Andrey, Restanho & Araujo Advogados.