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STF, OAB e a banalidade do mal

Cursei a graduação em Direito no início dos anos 2000, portanto, já sob a vigência da Constituição Federal de 1988, carinhosamente intitulada de Constituição Cidadã e certamente um marco civilizatório nacional.

Aprendi que se tratava do mais alto conjunto de normas jurídicas do Estado brasileiro, cujo respeito e aplicabilidade eram indispensáveis. Tínhamos a Constituição Federal (digo, eu e os futuros bacharéis), como um símbolo da estabilidade dos Direitos e da Democracia no país. Naquele momento, era impossível se pensar em seu descumprimento e nem mesmo em interpretações, de quem quer que seja, que desvirtuassem seu texto.

É certo que, nesse período, maturávamos entre os operadores do Direito uma diversidade de temas ainda jovens, tais como o dano moral e a desconsideração da personalidade jurídica (esta figura recém regulada pelo Código Civil de 2002), mediante a necessidade de uma suposta “melhor” hermenêutica dos Tribunais, que costumavam ser “a boca da lei”. Particularmente eu pensava que a interpretação mais livre das amarras da lei seca, com atenção a princípios do Direito, era indispensável, pois o que se apresentava nos julgados sob a letra estrita da legislação não satisfazia as demandas que recebíamos dos seus destinatários: os cidadãos.

Me tornei advogada e passei a compor os quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, vivenciando um momento em que ela gozava de status de entidade socialmente relevante. Era costumeiro presenciar sua forte e rápida atuação em todos os temas de relevo, nos debates acirrados sobre novas legislações e posicionamentos de Tribunais – quaisquer que fossem. Recordo que a imprensa e a OAB andavam juntas, trazendo informação à população e as devidas críticas às posturas de outras instituições quando necessário, sem ressalvas, sem medo.

Duas décadas depois, vejo um cenário modificado e até sinto “saudades” daquele Judiciário “boca da lei”, que se restringia (de certo modo) à aplicação da das normas jurídicas, mais ainda daquela OAB que me trazia um sentimento de pertencimento e acolhida para exercer a minha profissão, sem ressalvas e sem medo.

Explico e exemplifico. Apenas nas duas últimas semanas, vimos o Supremo Tribunal Federal determinar a suspensão de processos judiciais por todo o Brasil para discutir a competência da Justiça do Trabalho, mesmo sendo o art. 114 da Constituição Federal claríssimo quanto ao tema. Atônitos, também presenciamos a retirada (lacre) de celulares de advogados e de jornalistas presentes em julgamento da mesma corte, em evidente ato de censura prévia – de forma que as imagens das sessões do Tribunal somente serão transmitidas pela TV Justiça, ainda que não enxergue razão legal para qualquer restrição.

De outro lado, observo uma OAB leniente, sem proatividade, longe dos necessários enfrentamentos aqueles que violam Direitos e até a própria Constituição Federal, deixando os profissionais da advocacia e, consequentemente, a sociedade, à mercê das questionáveis decisões de autoridades – talvez, pela conveniência do “bom relacionamento institucional”, que alimenta projetos pessoais de seus dirigentes, estes, ao meu ver, afastados de sua missão institucional.

Mas há quem diga: a Ordem dos Advogados oficiou ao STF. Sim, muito provavelmente, mesmo porque é o que mais faz … oficia, mas não se impõe, não brada pela defesa do Estado Democrático de Direito, tampouco pela defesa das prerrogativas profissionais. É morna.

E a classe da advocacia? Aqueles que não ocupam posição de gestão institucional, mas que enfrentam diariamente as mazelas desse cenário? Parece-me que seguem anestesiados, talvez cansados do confronto individual, desassistidos de sua entidade. Até porque, quem não se cansaria de gritar para um abismo que não ecoa?

A situação me recorda o conceito de Hannah Arendt em sua obra “Eichmann em Jerusalém”: a banalidade do mal. Segundo a filósofa, o mal se torna comum à medida em que sua prática não se dá pela intencionalidade do sujeito, mas, sim, pela sua submissão (em automatismo) às ordens e procedimentos postos por supostas “autoridades”, sem reflexão crítica acerca da natureza moral de suas ações.

De se notar que o conceito da banalidade do mal é um fenômeno ligado à estruturação de regimes totalitários, que trabalham com vistas à conformação da obediência (sem racionalidade), dos indivíduos, os quais deste forma são mais facilmente moldados e manipulados, como nos alertou Arendt.

Está aí um alerta ao perigo da conformação da sociedade e da advocacia à cega obediência e subserviência às autoridades, ao não questionarmos e enfrentarmos instituições que desvirtuam a lei, as liberdades e a própria democracia.

Fica aqui o desabafo de quem ainda crê ser possível um resgate de consciências, de dignidade social e profissional: não nos anestesiemos pela banalidade do mal diariamente espraiada. Usemos da crítica bem fundamentada, sem jamais desistir da defesa dos Direitos e liberdades.

Vívian De Gann
Advogada, professora, doutora e mestre em Direito

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