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TIC: A vitória da burocracia sobre a inovação

Reflexões sobre as novas instruções normativas para a contratação por parte do Executivo Federal de soluções de tecnologia da informação e comunicação

As contratações de soluções de tecnologia da informação e comunicação por parte do Poder Executivo Federal consumiram, apenas em 2018, mais de R$ 8 bilhões, espalhados em 3,4 mil contratos distintos. E é provável que nos próximos anos o volume seja bastante ampliado diante dos investimentos necessários para aparelhar a Administração Federal com o esboço inicial do que possa ser um futuro Governo Digital, com o uso intensivo de inteligência artificial, internet das coisas, learn machines e tudo o que couber para gerar inovação.

Diante desse cenário desafiador, na última quinta-feira, 4 de abril de 2019, a Secretaria de Governo Digital do Ministério da Economia publicou as Instruções Normativas nº 1 e nº 2, que estabelecem regras sobre as contratações de soluções de tecnologia da informação e comunicação por parte do Poder Executivo Federal. Os objetivos da nova regulamentação, de acordo com o divulgado nas redes sociais do Secretário Luís Felipe Monteiro, são simplificação de procedimentos, melhoria dos serviços aos cidadãos e redução de fraudes.

A Instrução Normativa nº 01/2019, em sua maior parte, é dedicada ao planejamento das contratações de tecnologia da informação e comunicação. Ela revoga a Instrução Normativa nº 04/2014, da antiga Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do antigo Ministério do Planejamento, conhecida, justamente, por estabelecer regras pesadas sobre o assunto. Insista-se que um dos objetivos da Instrução Normativa nº 01/2019 é simplificar os procedimentos de planejamento, deixando de exigir alguns documentos como o Plano de Inserção, o Plano de Fiscalização e o Plano de Capacidade.

Pois bem, essa propagada simplificação de procedimentos é superficial ou mesmo falsa. O fato de um ou outro documento deixar de ser exigido não fez o planejamento prescrito na Instrução Normativa nº 01/2019 substancialmente mais simples. No fundo, ele permanece pesado, cheio de exigências divididas numa cantilena de documentos sobrepostos, com muitas informações comuns e repetidas. Trata-se de uma peça genuína e disfuncionalmente burocrática.

Na essência, o planejamento instituído pela Instrução Normativa nº 01/2019 é muito semelhante ao anterior, da revogada Instrução Normativa nº 04/2014. Em ambas as normativas, o planejamento servia e serve a produzir três documentos centrais: o Estudo Técnico Preliminar, a Análise ou Mapa de Riscos e o Termo de Referência ou Projeto Básico. O problema está no conjunto de providências, informações e aprovações demandadas para alcançar tais documentos.

Para que se tenha uma ideia melhor da complicação, de acordo com a Instrução Normativa nº 01/2019, apenas para o Estudo Técnico Preliminar são exigidas vinte e sete providências e informações distintas, a maioria de grande complexidade e subjetividade, que demandam esforço de investigação, como “soluções disponíveis no mercado”, “análise de projetos similares”, “capacidade e alternativas do mercado”, “análise e comparação entre os custos totais de propriedade das soluções identificadas” e “avaliação e definição dos recursos materiais e humanos necessários à implementação e à manutenção”.

O termo de referência, o principal documento da fase de planejamento, requer diretamente dez informações. No entanto, essas dez informações são subdivididas em pelo menos seis dezenas de outras informações, quase tudo bem complexo. A lista do que precisa ser inserido no termo de referência estende-se em doze artigos da Instrução Normativa nº 01/2019 (artigos 12 a 24), a maior parte deles com diversos incisos e alíneas. Só a leitura já cansa.

E muitas das informações e providências exigidas em uma das etapas do planejamento repetem-se noutras. A motivação ou justificativa sobre a contratação, por exemplo, deve estar no Documento de Oficialização da Demanda. A autoridade competente para aprová-lo também precisa motivar a contratação. Daí parte-se para o Estudo Técnico Preliminar, que culmina em uma declaração da viabilidade da contratação, cujo teor se presta, novamente, a justificar a contratação.  Depois se faz o termo de referência e, mais uma vez, é necessária outra justificativa para a contratação, com a advertência posta no parágrafo único do artigo 15 da Instrução Normativa nº 01/2019 de que “a justificativa deve ser clara, precisa e suficiente, sendo vedadas justificativas genéricas, incapazes de demonstrar as reais necessidades da contratação.” Ou seja, a Instrução Normativa não se contenta com uma motivação ou justificativa sobre a contratação; ela quer quatro diferentes, dadas em documentos diferentes e sequenciais.

Aliás, como tudo é tão complicado, o parágrafo único do artigo 3º da Instrução Normativa nº 01/2019 prevê, expressamente, a terceirização de “apoio técnico aos processos de gestão, de planejamento e de avaliação da qualidade das soluções […], desde que sob a supervisão exclusiva de servidores do órgão ou entidade”. Talvez o caminho seja mesmo contratar o apoio externo de consultorias especializadas, na esperança delas reunirem gente experimentada que consiga vencer tantas exigências.

Para além disso, no mesmo 4 de abril, a mesma Secretaria de Governo Digital pôs na rua a Instrução Normativa nº 02/2019, irmã siamesa da Instrução Normativa nº 01/2019. A norma 02 presta-se a exigir que as contratações de tecnologia da informação e comunicação cujos valores projetados superem, atualmente, R$ 28,6 milhões sejam submetidas e aprovadas pela Secretaria de Governo Digital antes da publicação do edital. A análise deve ocorrer em 30 dias, prazo que pode ser prorrogado por igual período. Até que haja a aprovação, tudo deve ficar parado, autorizam-se apenas supostos procedimentos internos. Também se exige a aprovação para aditivos contratuais que importam variação de valores superior a 25% do estimado na proposta inicial. Tudo isso desvela a desconfiança de que os órgãos e entidades federais façam besteiras e a confiança que a Secretaria de Governo Digital tenha a capacidade e a disposição de corrigir as tais besteiras. Fica claro que a Secretaria de Governo Digital desconfia dos outros e confia em si.

Podem-se falar muitas coisas sobre a regulamentação, mas é difícil reconhecer que houve verdadeiramente esforço para tornar os procedimentos mais simples. A impressão, bem ao contrário, é que não houve equilíbrio, que as coisas ficaram tão ou mais complicadas, que se alargou o fosso da burocracia disfuncional.

O mérito desse modelo burocrático é controverso. Por um lado, pode-se alegar que a burocracia qualifica a decisão administrativa, dado o planejamento exaustivo. Noutro lado, mirando os aspectos negativos, parece evidente que se perde celeridade nos projetos de tecnologia da informação e comunicação, sobretudo diante da deficiência de quadros especializados nas diversas soluções por parte dos órgãos e entidades do Executivo Federal. Não é exagerado estimar, conhecendo um pouco a realidade da Administração Pública Federal, meses e meses, senão anos, para fazer todas as investigações, levantar informações, copilá-las, aprová-las nas instâncias competentes e chegar ao ponto de publicar um mero edital. E isso é só o começo, ainda falta fazer a licitação.

Não há nada mais acelerado do que a inovação tecnológica. Na prática, diante da realidade dos órgãos e entidades da Administração Pública Federal, as Instruções Normativas, com tantas exigências e formalidades, impõem passos de tartaruga. Com o ritmo arrastado, o risco é que no momento da contratação a solução contratada esteja defasada. E, aqui está o dilema: de nada adianta tanto planejamento para ao final contratar solução já ultrapassada. Falando de tecnologia, a demora faz inútil o planejamento e mata a inovação.

Joel de Menezes Niebuhr

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