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Voz dos municípios deve prevalecer na reforma tributária, pois eles são o Brasil

O presidente da República Italiana, Sergio Mattarella [1], em novembro de 2022 quando participou de um evento promovido pela Associação Nacional, que reúne aproximadamente 7.904 municípios italianos, assim se manifestou: “I Comuni sono l’Italia, sono la Repubblica”. Parafraseando o presidente italiano, podemos dizer então que os municípios são o Brasil, que os municípios são a República.

Para garantir o sustento das pessoas que vivem nas cidades, os municípios têm competência privativa para instituir o ISS e, nesse sentido podemos afirmar que o produto da arrecadação desse importante tributo é uma grande fonte de renda para esses entes federados. O Imposto Sobre Indústrias e Profissões foi inserido na competência municipal sob a égide da Constituição de 1946. Com o advento da Reforma Constitucional 18/65 esse imposto foi rebatizado com o nome de Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN ou ISS), como é conhecido até os dias de hoje, sendo que atualmente é regulado pela Lei Complementar Nacional nº 116/2003.

Não é novidade para ninguém que o segmento dos serviços está a crescer a olhos nus. Os grandes e médios municípios já contam com o seu aparelhamento operacional para arrecadar o ISS, sendo muito incerto dizer que a arrecadação com o novo modelo de reforma tributária seria maior para esses entes federados. Em primeiro lugar porque não há estudos prévios que assim o comprovem. Aliás, não há sequer uma estimativa baseada em fatos reais, até porque muito se fala, mas ainda não há unanimidade sequer no que concerne ao percentual da alíquota do novo Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS) e se ela será unificada.

O ISS saiu do ostracismo para virar estrela principal. A verdade está em dizer que o setor de serviços é cobiçado pelos Estados e os Municípios não mediram esforços — sempre dentro de suas dificuldades estruturais — para buscar a receita tributária que a Lei Complementar 116 proporcionou. Para tanto, investiram maciçamente na marca ISS, contrataram sistemas tecnológicos e assessorias, montaram novas estruturas de administração tributária, trabalharam incansavelmente no aperfeiçoamento nas legislações e investiram em pessoal. Tudo isso é valor agregado gerado na construção e modernização do imposto municipal, não havendo como se dizer que tal conceito não pode ser aplicado ao direito público porque o dinheiro público vem do particular e, ainda, porque essas perdas decorrentes da não reparação do valor agregado ao ISS refletirá diretamente nos habitantes das cidades, afinal é nelas que eles vivem.

Os municípios e os seus habitantes, são os grandes perdedores nessa vontade em aprovar “qualquer coisa” que se chame reforma tributária. É muito fácil para os parlamentares brasileiros e também para o governo federal, ajudados pela mídia totalmente desinformada juridicamente, que a reforma tributária seria um grande feito para o Brasil. Basta ligar a televisão para se ouvir um único e afinado discurso, como se a proposta apresentada fosse a salvação e a operação de um milagre para o país. Mas se você perguntar sobre os possíveis resultados obtidos com essa eventual modificação do sistema tributário nacional e, se, efetivamente haverá redução da carga tributária, ninguém saberá responder a essa indagação. E sabem por qual motivo? Porque não há respostas. Porque a reforma tributária, nos moldes que a querem aprovar, é um tiro no escuro.

O que se sabe de concreto é que há previsões lapsos temporais para que o novo sistema seja colocado em prática. O texto da PEC 45, da Câmara dos Deputados, prevê uma transição em dez anos, com diminuição gradual das alíquotas dos impostos atuais, e a PEC 110 sugere uma transição de 15 anos, em duas etapas.

Tudo parece mágico e fácil quando se assiste aos pronunciamentos das autoridades sobre o tema na mídia brasileira, porém, indaga-se: e quem pagará pelo custo dos dois sistemas que terão de caminhar juntos? E os profissionais da área tributária, como os contabilistas e os advogados tributaristas, terão condições de arcar com esse aumento de despesas justamente numa época de inflação alta e crise econômica? Certo mesmo é que tudo recairá na conta do contribuinte.

Ainda falando sobre os custos das mudanças, cabe lembrar que em todos os modelos de reforma tributária existentes hoje no Congresso Nacional fala-se da criação de um comitê gestor para fins de controle do novo sistema a ser implantado com a reforma tributária dos tributos sobre o consumo. É óbvio que, para tanto, considerando o tamanho de nosso país e das unificações pretendidas, será necessário investir maciçamente em programas de informática e em plataformas de inteligência artificial, com a introdução de sistemas modernos e capazes de arcar com a simplificação prometida pelas propostas existentes no Congresso Nacional, lembrando, mais uma vez, que não há nenhum estudo prévio que identifique que com a reforma tributária haverá redução da carga fiscal para a população brasileira.

Por fim, vale dizer, que a Proposta de Emenda à Constituição nº 110, de 2019acaba com o modelo federativo, não sendo apenas um retrocesso existencial dos municípios. A PEC 110 é inconstitucional, na medida em que ofende o pacto federativo. Deixar os municípios nas mãos dos estados para receber o que hoje lhes pertence de forma exclusiva, representa uma ingerência incompatível com o modelo federativo, donde se conclui que há ofensa da cláusula pétrea inserida no artigo 60, § 4º, inciso I, da Constituição.

A forma adotada pelo Estado brasileiro somente pode ser desfeita por um novo processo constituinte. Uma nova Constituição e não somente com uma emenda à Constituição. Não se retira de um ente federado o seu poder de uma hora para outra, como querem fazer com a reforma tributária prevista na PEC 110 e na PEC 45. A retirada do ISS para colocá-lo com outra roupagem nas mãos do Estado é ultrajante, mesmo havendo obrigação no repasse das parcelas da verba assim obtida para os municípios.

Esses mais de 5.000 entes federados devem se sustentar e realizar atividades para dar guarida às necessidades básicas de uma população. Devem fazê-lo com autoridade e poder. Retirar o ISS da competência dos municípios é retirar o poder do gestor público municipal, que será obrigado a mendigar a parcela que lhe é devida. É deixar o município à margem. O respeito da União e dos estados para com os prefeitos, e para com os municípios em si, já não é algo que se desenha de forma natural, imagine-se então se esses deverão depender quase que totalmente da entrega do produto da arrecadação para fazer frente às suas necessidades. Perder poder é perder tudo. Sem o ISS não haverá mais a autonomia dos municípios, os quais já não estarão mais em pé de igualdade com os demais entes federados.

Sem o ISS, os municípios passarão de entes federados, como assim são reconhecidos pela Constituição de 1988, a meros figurantes da representação política do poder central. Se hoje, infelizmente, já são chamados de entes subnacionais, amanhã, com a perda da competência para tributar o ISS, serão conhecidos apenas como meras estruturas administrativas auxiliares da concretização dos interesses da União e dos estados. E os prefeitos? Os prefeitos perderão a dignidade e muitas serão as “marchas” para Brasília e para as capitais dos estados porque os municípios já não mais serão o Brasil e nem a República almejados por Mattarella.

 é procuradora do município de Blumenau, especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal de Santa Catarina, em Mediação, Conciliação e Arbitragem pela Faculdade Verbo Educacional-RS, membro fundador do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo, Financeiro e Tributário (Ibdaft) e autora da obra O ISS nos Serviços Notariais e de Registros Públicos.

[1] Disponível no seguinte endereço eletrônico: https://ancicampania.it/mattarella-i-comuni-sono-litalia-sono-la-repubblica-e-frena-lautonomia-differenziata-pari-dignita-tra-nord-e-sud/. Acesso no dia 14 de fevereiro de 2023.

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